sábado, 20 de fevereiro de 2010

EPISÓDIOS EM TEMPO DE GUERRA


As mentes dos combatentes têm muitas histórias guardadas, algumas a sete chaves como se costuma dizer. Mas já vai sendo tempo, de lhes darmos asas e as colocarmos a voar.

São muitos os camaradas que retêm ainda muito solidamente, muitos dos episódios em que participaram enquanto militares, que se reportam a momentos vividos na acção da guerra, ou mesmo nos momentos mais descontraídos daquelas horas que preenchiam os períodos de licença, em que muitas vezes se tornavam muito activos, confusos, e violentos até, fruto de uns copos a mais, que não permitiam um juízo apaziguador de uma qualquer inconveniência, ou então, porque se tinha a consciência de que podia ser a última oportunidade que se desfrutava, porque o amanhã, podia ser o último, de um não mais amanhã. A guerra induzia muita instabilidade, especialmente ao nível do comportamento dos militares, antes e depois das refregas que nos era imposta pela actividade dos guerrilheiros.
Tal como a grande maioria, também eu me não envergonho de ter participado em muitas coisas, tenham elas, mais ou menos dignidade, na perspectiva do casuístico espectador, ou dos prevaricadores e participantes na contenda.

E coisas há, de que me orgulho ainda hoje, e para sempre. Os Fuzileiros tinham como princípio, não deixar de fazer os ajuntes de contas que na sua perspectiva entendiam dever ser feitos, “sempre foram de boas contas” foi isso que desta feita, mais uma vez aconteceu.

Para tanto, contribuiu um acidentado episodio, em que um filho da escola, o então cozinheiro do navio hidrográfico Carvalho Araújo esteve envolvido, e que sem querer, (despoletou uma intervenção marginal a qualquer directiva de comando), quando certo dia, usufruindo de mais um dia de licença, vai até São Paulo, “bairro de aluguer de alguns prazeres” composto por gente maioritariamente nativa, para aí tentar uns momentos mais íntimos que o compensassem da falta de tanta coisa que a vida tem, e que a algumas delas qualquer um se sente minimamente com direito, seja através da conquista, da dádiva, ou da compra. Foi a esta última opção que ele se candidatava naquele dia, em que a morte quase o assaltou, e por muito pouco tomava o lugar do prazer que pretendia porque a tragédia esteve perto de acontecer. Ao deslocar-se para o objectivo, foi emboscado e agredido tão selvaticamente, que a intenção, era mesmo liquidá-lo. Infelizmente, isso já tinha acontecido a outros militares do Exército, naqueles santuários camuflados que eram, os muceques que envolviam a cidade de Luanda.

Decorria então o ano de 1964 e estava o meu 6º Destacamento em Stº. António do Zaire, enquanto em Luanda se encontrava outro, em tempo de intervenção, essa unidade estava recheada demais de elementos de “antes quebrar que torcer”, e como uns fazem os outros, muitas vezes o que custa é aparecer a iniciativa, que depois a disponibilidade e empenho de camaradas não falta.

Ao regressar à cidade de Luanda depois de mais uma intervenção em zona da guerrilha, e ao ter conhecimento do tratamento dado ao filho da escola, que não sendo Fuzileiro era como todos os outros, merecedor da solidariedade dos Fuzos, tanto mais, que o camarada era um homem que primava por conviver e estar sempre por perto da malta. Talvez também por isso, resolveram saldar as contas que estavam em atraso até porque se impunha dar uma lição exemplar antes que fosse tarde, e que os juros fossem mais tarde incomportáveis e ficasse como divida para toda a vida, a vida de alguém. Foi planeada então, uma intervenção, e da estratégia constava por fazer incidir em locais diferentes escaramuças, para aí fazer chegar as forças de segurança, as várias polícias “civis e Militares” este primeiro objectivo foi atingido com êxito o que proporcionou o tempo adequado para que a intervenção na zona planeada fosse suficiente sem o inconveniente de engulhos de última hora. “Este bairro era dos que mais confinava com a cidade”

Depois do lançamento do very light à hora previamente estabelecida, deu-se o assalto com algumas armas que se tinham levado, G-3, (desmanchadas em sacos) facas, punhais e granadas. Os objectivos da operação relâmpago foram alcançados e os mortos foram umas dezenas. Toda a rapaziada que interveio regressou à base que naquela época eram as I.N.I.C. (instalações navais da ilha do cabo) sem que alguém fosse apanhado, uns alcançaram as instalações a nado, outros com a colaboração dos taxistas e a compreensão da polícia naval que na única passagem por terra controlava a situação, e que era formada por camaradas Fuzileiros.
Houve dois camaradas pára-quedistas, que fizeram questão de participar. Um deles foi apanhado e esteve preso. Realço uma curiosidade, mesmo que macabra. Um camarada que esteve operacional naquele ajuste de contas, por não ter encontrado a sua navalha da ordem, pediu ao camarada que estava de serviço à porta de armas que lhe emprestasse a sua a que o dito se prontificou, essa navalha foi por ironia do destino a única denúncia da actuação dos Fuzos, por ter ficado espetada no peito de uma vítima. Mas de nada valeu como prova, porque o nº que a denunciava era de um camarada que esteve de guarda às instalações na noite da ocorrência, e ao ser interrogado, disse que a tinha perdido.

Admito algumas omissões, na descrição feita por não ter participado na refrega, mas não me frutaria a ela, por isso aqui estou a tentar dar uma panorâmica o mais fiel possível do que me foi contado. E como é óbvio, não me envergonho de mais uma atitude autónoma e assumida colectivamente, como em tantas outras ocasiões e locais ocorreram, com bons e justos resultados.

Para lá de todas as opiniões manifestadas, mais ou menos severas desta atitude, que então ocorreu, críticos houve, que se deviam despir das asas que abusivamente vestiram e vestem. Os senhores, causadores e sustentadores das guerras, que nunca pagaram as suas facturas, e nunca sofreram as suas agruras, estarão sempre em dívida com algo que tenha a ver com a dignidade, e a defesa da honra. Os Fuzileiros, mal ou bem, têm pago as suas, algumas vezes com a vida, não abdicando de princípios e valores, que incredulamente para alguns samaritanos, nos orgulham!
Mário Manso

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