sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

HOMENS que nunca morrem! - Ricardo Ferraz

Os homens retêm na memória momentos de glória, ou da mágoa de uma qualquer história. Eu tenho vivo no meu arquivo da glória, um homem que na Escola de Fuzileiros deixou um cunho muito acentuado. Ricardo Ferraz era tramado, ninguém podia estar descuidado, porque era logo entalado. Para quem não saiba, foi durante décadas o professor de boxe da Escola de Fuzileiros. Contribuiu para que, em muitas das contendas em que os Fuzos estiveram envolvidos, os KO’s, mais ou menos técnicos, surgissem quase sempre antes do último assalto, porque os nossos adversários, ou iam ao tapete, ou abandonavam o combate e o ringue.
Enquadro agora um episódio de que fui interveniente. Tinha-se já definhado o sábado e eram já 01h30 de um domingo do ano de 1963 (poucos dias antes de ir para Angola) e no trajecto que fazia a pé da feira popular para o Poço Bispo, já no fim da Av. do Brasil perto da rotunda do relógio, surge de dentro das árvores ai existentes um grupo de três amigos que de forma inusitada disparam uns palpites pouco abonatórios aos meus dois camaradas que mais à frente com eles se cruzaram; tendo ficado a fazer um xixi, eu vinha mais atrasado. Quando chego junto deles, o conflito verbal estava já muito aceso, e se até ali eram três contra dois passámos a estar em igualdade. Coloquei de parte a ideia de exercer a função de bombeiro e, de imediato, confrontei o mais matulão, insurgindo-me contra a provocação desencadeada, dizendo-lhe que mereciam todos um par de murros na tromba. A intimidação continuou com afirmação, de um deles, de que o grandalhão era campeão de boxe do Sporting. O herói, de imediato, tenta atingir-me com um soco, em que era perceptível a técnica do boxe. Eu tinha já um ano de instrução, havia há pouco terminado o curso de Fuzileiro Especial e desde a recruta que sempre me foi simpático ir para o ginásio dar e levar com as luvas de dez onças no nariz, tendo até, sido escolhido no dia do juramento de bandeira para representar o boxe. Como o receio de se levar um murro era inexistente, porque já se tinha levado e dado vários, sobre a batuta do velho mestre, que incansavelmente nos elucidava da melhor forma de utilizar os punhos, e de que a melhor defesa era o ataque (mas, sem nunca descurar o valor e o respeito pelo adversário). Estes conselhos foram determinantes para levar de vencida o tal artista que se pintou com o seu próprio sangue que lhe jorrava do nariz. Por falta de juiz de ringue, e de assistência, perguntei-lhe às tantas, se queria mais, ou se ficávamos assim. Unanimemente os três pediram desculpa e seguiram também a pé os seus destinos tal como nós, que por falta de transpores àquela hora seguimos o nosso percurso.
Foi um privilégio para quantos puderam conviver de perto com a violência das suas carícias, ter tão exímio professor, que mesmo não ensinando matemática, ou português, ajudou com uma disciplina, que muito contribuiu para dignificar os Fuzileiros e a instituição, defendendo a vida, que também se escreve com letras, ou a dignidade que em certas alturas valeu todo o dinheiro do mundo. Foi assim que muitos amigos se gladiaram esmurrando-se algumas vezes mas, sem que isso tenha desvanecido a camaradagem e amizade, que ainda hoje continua forte e a recomendar-se.

Lembro-me de, num dos nossos encontros nacionais, termos estado a conversar envolvidos num grupo de vários camaradas, e onde ele ainda continuava a colocar à prova os nossos reflexos, levantando um braço para abrir o caminho, e com o outro nos colocar o punho no estômago, a sua tentativa em mim não surtiu efeito, porque eu naquele momento tinha recuado umas dezenas de anos e tinha presente o quanto ele gostava de nos fintar. E disse-me assim: olha! Fico feliz, porque tu foste um dos muitos por quem valeu a pena eu gastar o meu latim, porque não descuidas a tua defesa. Foi uma daquelas conversas inesquecíveis, porque rimos, e chorámos quase das mesmas coisas, sem conseguirmos envergonhar, ou controlar os nossos sentimentos.
Quando morreu, foram os seus Fuzileiros como ele carinhosamente dizia, que aos ombros o conduziu à sua última morada. Como homenagem, fiz-lhe na altura, cinco versos, acrescentei hoje mais um, para que representem a década em que o conheci. Espero também, que possam contribuir par iluminar a estrada, da sua nova caminhada, para que o seu espírito o percorra em paz.

11 comentários:

Anónimo disse...

Amigo Mário, eu fui um dos muitos que teve o privilégio de ter tido como formador este HOMEM! Não convivi com ele para além desta relação, por isso não o conheci como tu mas, do contacto quase permanente como seu instruendo, durante vários meses, ficou a imagem de um HOMEM à antiga: forte, leal e camarada!!!
Não sabia da sua última viagem e este artigo devolveu-me determinado período da vida que eu tinha imaginado como perdido.
Bem haja Mestre Ferraz!
Obrigado pelas memórias recuperadas, amigo Mário!

Anónimo disse...

Vale a pena de facto fazer-mos coisas, quanto mais não seja para termos o prazer, de constarmos que não estamos só nas nossas opiniões, tenho a certeza de que como nós, pensam muitos outros camaradas, acontece sempre que há homens, que quer seja pela negativa, ou positiva, como é o caso, jamais esquecem. Também tu, Vitor, mereces um abraço especial.

Anónimo disse...

O anónimo por burriçe não deu o nome mas talvez calculasses quem era.

Anónimo disse...

Olá meu grande AMIGO, que maravilha tiveram os meus olhos ao contemplar tão maravilhoso documento. Está uma beleza um bem-haja para quem o produziu, e para ti MÁRIO, um abração do tamanho do UNIVERSO. Teu fiel AMIGO. PARREIRA

Anónimo disse...

Meu caro Zé Manuel Parreira, é sempre um prazer ouvir-te, ler-te, ou simplesmente, pensar que tenho em ti um dos meus grandes amigos. Olha camarada! Isto é fruto, da amizade que se estabeleceu entre dois Filhos da Escola que, pertenceram à mesma especialidade, e o mais novo ao fazer esta surpresa a este velho Fuzileiro, mostra que nunca nos podemos considerar descansados. Não quero dizer que os Fuzileiros sejam melhores, ou piores que os outros, mas são, certamente diferentes e quem diz, são todos aqueles que no dia-a-dia connosco vão convivendo, ou todos aqueles outros Filhos da Escola que prestaram, ou fazem serviço nas nossas unidades. Dizem muitos deles sem hipocrisia, que tiveram agradáveis surpresas, quando conhecedores dos nossos valores e da forma como enfrentamos os problemas, ou somos solidários. E o Vitor, é um, dos que teve hipóteses de ajuizar da verdade dessa constatação porque esteve nos dois lados da barricada. E tem sido assim, que paulatinamente temos vindo a construir o nosso património honradamente, ainda que, por vezes, tenhamos sido tratados, e considerados, uns enteados. Já me dizia a minha avó: olha filho, o mal de inveja é muito mau, mas os Fuzos, foram treinados para ultrapassar e dar luta, a toda e qualquer cobiça de todos os filhos da ..t. ? Não: desta Nação! Que sem moral ou justiça, são a negação dos valores e da razão.
Cá vamos esperando pelo teu contributo.
O meu abraço de amizade

Anónimo disse...

Esse Ferraz devia ser mesmo tramado! A minha mulher tem esse apelido no nome... eheheheh... eu sei o que digo!!!
Um abraço para o Vítor e para o meu vizinho Mário Manso, aproveitando desde já para prestar a minha homenagem a alguém que não conhecia, mas que devia mesmo ser especial, ou não mereceria o apreço das pessoas que conheço.

Carlos disse...

Mais uma vez, houve alguém que apareceu como anónimo!... Está a ver Sr. Mário?!!! pensava que era só você?...
Um abraço!

Anónimo disse...

Carlos: Caro Filho da Escola. Também tu és especial e a diferença de idade entre nós, está mais ou menos como, a que havia entre mim e o Mestre Ferraz, nos nossos tempos áureos. E se a tua Esposa vai a Ferraz só pode ser uma excelente criatura, não era preciso este achega para assim a considerar, é uma senhora com uma sensibilidade que muito aprecio. Infelizmente, nem todas as pessoas têm bons vizinhos, mas eu, tenho esse privilégio. Para vós, um abraço e um beijinho.

fatima fino disse...

Padrinho gostei muito da sua mensagem e dos versos sentidos dirigidos ao Mestre Ferraz.
Nota-se que foi um Homem que o marcou quer fisicamente (eheheheh - os muros no estômago) quer psicologicamente.
Força e tenacidade fisíca e psicológica são factores muito importantes para se ultrapassar as provações e marcas que deixam uma guerra e penso que foi isso que o Mestre transmitiu.
Continue a escrever quer em prosa quer em verso porque o seu escrever tem garra e sentimento. Parabéns e um beijinho da afilhada

Anónimo disse...

Olá Fátita! É bom saber do teu apreço, pelo que vou ditando para o papel, como sempre vou correndo os meus riscos. (a minha academia isso enuncia) Assim tem sido parte da minha vida, especialmente no tempo em que estive no activo agora, vão ainda decorrendo alguns, mas nesta fase os tiros não matam com a mesma precisão, mas sendo disparados de uma arma, menos belicista das de outrora, não deixam por isso, de não causar danos, estragos esses, por vezes também irreparáveis. Mas a vida é um constante nutriente de riscos. O simples facto de vos ir visitar em Dezembro de 74 quando em Angola a guerra urbana se perfilava também o foi, mas valeu a pena ouvir aqueles tiros nos muceques, e ter a percepção de quanto os medos de uma guerra, são estuporados, seja para os seus profissionais, ou para as populações nelas inserida. Tu não te apercebestes, porque eras ainda muito pequena. Mas hoje, já adulta e partilhando das vivências, testemunhos e consciência dos inconvenientes porque passou toda a tua (nossa) família! É muito importante, poderes transmitir o teu estado de alma sobre algo, que não presta, mas que ainda, muitos dizem descaradamente ser boa.
Um beijo.

gabinete fisioterapia estetica sardoal disse...

José Pinto 75377
Quero aqui deixar um grande abraço a todos os filhos da escola , para ti Vitor Costeira um em especial camarada .

Homens que nunca morreram !

Em relação a este SENHOR e á importância que ele teve nos fuzileiros e que fez parte da minha vida não só como mais um dos milhões de alunos dele como depois como seu auxiliar nas aulas de boxe na EF .Par aqui deixar o apreço que sinto por este grande SENHOR transcrevo uma frase dele escrita por mim numa das paredes da Sala de Boxe , e penso que ainda hoje perdura .

Querer é poder e um fuzileiro pode sempre .

Isto dizia ele aqueles alunos mais receosos para praticar este desporto que marcou uma época nos fuzileiros .
Obrigado MESTRE FERRAZ um beijo para ti do teu pupilo .
José Pinto