quarta-feira, 3 de setembro de 2008

RELEMBRANDO


Certo dia quase se morria,

pela água que não se bebia.


Agora a uma distância de dezenas de anos, até sabe bem lembrarmos as dificuldades porque passámos. Para tanto, basta compararmos a falta de água para beber, e de um mediano petisco para comer, com aquilo que hoje conseguimos; ter.
Muita coisa aconteceu, e algumas vezes, por pouco se não morreu. Foi lutando pela sobrevivência, em completa carência de meios para satisfazer a mais elementar necessidade, que sem resquícios de vaidade se lutou contra o abandono a que éramos sujeitos. A guerra, tem muitos momentos, que são autênticos tormentos, e só existem porque quem os provoca, nenhum sofrimento lhes toca. Nos gabinetes, onde bem acomodados e melhor acompanhados, em que tudo existe à fartazana, nunca a guerra é uma tirana. Quem se lixa é a lagartixa, que rastejando neste mundo imundo, pouco ou nada se importava que fosse ao fundo.
Mas afinal que democracia é esta, que para a grande maioria, não presta? Custa constatar, que são os próprios ao votar, que se estão a tramar e depois, começam a choramingar porque a uma vida digna, não conseguem chegar, nem sequer enxergar.
É tudo muito complicado neste globo de enjeitados, em que só uma minoria, são considerados. Sinceramente, por esta forma de política, não me sinto apaixonado.
Mas afinal, não era por esta picada, já muito trilhada, esburacada, e sem regras nem nada, que eu vos alvitrei como estrada.
Vou voltar ao cruzamento, onde me descuidei e enveredei ao som do vento pela estrada errada que não conduzia ao azimute que me leva àquele tempo de muito sofrimento.
Vou-me situar, e sem exagerar, falar-vos duma peripécia vivida na guerra do ultramar. Vencíamos o ano de mil novecentos e sessenta e quatro, e a certa altura, com grande aparato damos corpo e alma a mais uma caça desvairada, ao “inimigo” que povoava uma zona de que se não conhecia nada, afinal despovoada. A zona não oferecia condições de sobrevivência logo, as populações não se instalavam, em locais de tanta carência. Uma das mais importantes para sobrevier é a água, sem ela cedo acabamos por morrer. Mas os eruditos estrategas no aconchego dos tais gabinetes, sem qualquer mágoa mandavam homens para onde nem sequer havia água, importavam-se pouco ou nada, com as dificuldades da rapaziada. Foi sem os apoios que aquela nomadização impunha, que um grupo de vinte homens, avançaram para cumprir com brio a missão que lhes foi confiada, sem questionar nada. A reserva de água era o cantil de cada um, sendo que as necessidades eram variáveis entre os elementos do grupo havendo um ou outro com mais necessidades. Não era o meu caso porque o Esquelas, era muito contido na utilização do precioso líquido, como tinha sido prática no curso, e como a carne não me pesava, aguentava mais que outros .
Decorriam já dois dias e duas noites, e a pequena dose do precioso líquido, tinha sido consumido e as forças eram cada vez mais débeis, mais ou menos, todos os homens daquele grupo estavam a ficar nos limites. Mais uma noite se aproximava, e a boca de alguns amargava, pelo capim que um e outro mascava. Alguns camaradas havia, que já não articulava palavra, nada se via e ninguém dormia, esperando pelo novo dia. A situação estava complicada, entretanto, dois voluntariosos e inconformados Fuzos resolveram dar uma vista de olhos pela zona que os envolvia, não fosse o diabo tecê-las. Valeu a pena, porque encontraram aquilo que teria sido um charco agora sem água, restava apenas terra húmida com cavidades à mistura. Era nada mais nada menos que um local, onde os elefantes desesperados procuraram água, então, fizeram buracos com a tromba onde retiraram algum líquido, ao mesmo tempo que no local despejaram a bexiga. Foi neste chavascal imundo que se conseguiu amenizar um pouco a falta do precioso. Foi com as latas da dolca da ração de combate, que atada a um fio de tropeçar que levávamos ao fundo dos buracos retirando algum produto. É claro que o problema continuava instalado, mesmo mal visto por todas aquelas almas penadas, não os abandonava. Restava-lhes esperar pela manhã para pelo menos, mascar algum capim ensopado pelo cacimbo da noite, e tentar encontrar algum local com água que saciasse todas aquelas bocas loucas de secura. Foi muito cedo, ainda mal se via que começamos de novo a rumar na direcção que a bússola determinava. Os trilhos não existiam, fomos nós que por lá deixámos um imenso auto-estrada, bem sinalizada, mas sem portagens ou limites de velocidade.

A ligeireza com que nos deslocávamos era tal, que nada passava despercebido, e foi fácil detectar lateralmente, um charco onde vários esqueletos de animais o calcetavam, o que ilustrava bem, a falta de água na zona. Mais uma vez, tivemos que não ser esquisitos, e de imediato começamos “os que ainda tinham alguma energia” a escavar no limite circundante do lamaçal buracos, para permitir uma primeira filtragem e da forma já utilizada, lá se foi tirando algumas misérias para dar àqueles que estavam nos limites. O sol era escaldante e a grande maioria estava incapaz e prosseguir, então, o Russo e o Esquelas não conformados com aquela injustiça, resolveram ir ao encontro de umas árvores que ao longe diziam presente e nós lá fomos em frente. Em boa hora o fizemos, porque lá chegados, deparámos com um nascente que vomitava água cristalina, deixando-nos de tal maneira afortunados com aquele milagre, que de imediato, nos ajoelhamos e tal como os burros na minha terra, bebemos até mais não querer, depois, fizemos uns quantos tiros anunciando que algo tinha acontecido. Enchemos os dois cantis e viemos trazer aos camaradas que continuavam quase todos, no local onde os tínhamos deixado, depois de dividido irmãmente o precioso magnífico, recolhemos cinco cantis cada um, e fomos abastecer de novo. Ao voltarmos, fomos encontrando alguns na auto-estrada então já bem definida. Pouco tempo depois, as cenas foram impressionantes, se tivessem sido gravadas, e hoje vistas, ajudariam muitas pessoas, a terem outro comportamento por quem passou tanto tormento.

FOI UMA GUERRA ONDE SE MORREU E MATOU, SÓ SEI, QUE COMO EU ERA, NUNCA MAIS SOU.
INCOMPREENDIDOS E DESPREZADOS, EM CONSEQUÊNCIA, DO QUE NÃO FORAM CULPADOS.
IGNORAM AS PESSOAS, SEUS DIREITOS E RAZÕES, COMO SE O SOFRIMENTO, FOSSE APENAS ILUSÕES.
UM PAÍS QUE NÃO ACARINHA QUEM POR ELE LUTOU, SÓ PORQUE NÃO DESERTOU, NÃO EXISTE ACABOU.

Um forte abraço.
Mário Manso